terça-feira, 26 de abril de 2011

Minha relação com Deus e minha convicção de Sua presença


Algumas palavras de uma serva de Deus, psicóloga e mãe que vivenciou a irreversível enfermidade de um filho


Irmã Letícia Kancelkis Porta, congrega na AD Campinas é doutora em Psicologia e freqüentadora da Escola Dominical na classe “Família Cristã” e autora do livro “O Sol Brilhará Amanhã” – leticiakpt@terra.com.br
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Para a mulher, o tornar-se mãe cria transformações emocionais consideráveis, de forma que a gestação e maternidade podem trazer conflitos e conteúdos inconscientes, que influenciam na qualidade de tal relação. Esta pode ser permeada de sentimentos intensos e ambivalentes, sendo que a gestação e os primeiros meses após o nascimento são essenciais para a construção do vínculo, havendo repercussões importantes e a longo prazo. Uma hospitalização muito longa, seja qual for seu motivo, pode influenciar no desenvolvimento físico e psíquico do bebê e o trabalho de psicologia se insere nesta área através de estratégias de avaliação, prevenção, intervenção e promoção de saúde psíquica (Iungano, 2009).

De fato, minhas próprias experiências como mãe de criança com tantas necessidades especiais, inclusive de internações em UTI, das quais a última com duração de três anos, em que foram necessários tantos procedimentos invasivos, fazem com que eu possa testemunhar a intensidade das dores emocionais vivenciadas em uma situação como esta, trazendo um verdadeiro esgotamento e a conseqüente fragilidade.

Isto porque, além de todo o sofrimento físico e psíquico, como mãe cujo filho encontra-se nestas condições, os contextos de hospitalização, sobretudo em UTIs, implicam, muitas vezes, em assistir a sofrimentos intensos de tantas outras crianças e acompanhantes destas, envolvendo perdas tão dolorosas. O sentimento de empatia de uma mãe em relação a outra faz com que a cura e restabelecimento de uma criança que receba alta da UTI provoque grande alegria e satisfação a ela por este acontecimento, como se aquela criança se transformasse em um filho “um pouquinho” seu também. Este mesmo sentimento de empatia traz uma dor incalculável quando uma criança morre ao lado de seu próprio filho; criança que se aprende a amar desde que chega na UTI, passando a compartilhar uma verdadeira luta pela vida, luta para continuar junto de seus familiares tão amados e também luta contra a dor.


A morte remete à ruptura do vínculo, a um limite, podendo ser considerada, talvez contraditoriamente, um entrelaçamento da própria vida, ao mesmo tempo. Este tema incomoda, de tal modo a preferirmos evitá-lo (quando podemos fazer isto). Ele, no entanto, de alguma maneira, sempre se faz presente nas faltas, nos meios de comunicação, nas guerras, no vizinho. (Souza, 2008).

A Palavra de Deus nos diz que Ele é a nossa Luz e a nossa Salvação e que, portanto, não devemos temer mal algum (Sl 27:1).

A lei natural parece ser: nascer, crescer, envelhecer e morrer. E quando esta “lei” é (aparentemente) ameaçada, com a morte de uma criança? Como ficam os vínculos entre mãe e filho quando eles, cada qual com sua própria capacidade consciente e inconsciente, vivenciam não somente o próprio sofrimento, como também o de pessoas que, há tão pouco tempo desconhecidas, de repente, adquirem tão grande significado para si, estando, inclusive, passando por situações tão similares às vivenciadas por ambos?

Assim sendo, consideremos que, de acordo com Leal (1993, pp.31), “a realidade humana assenta na comunicação como formato primário de todos os vínculos. O indivíduo sai de si mesmo para se encontrar ao estabelecer um contato, um convívio, com alguém outro que lhe reconhece o ser e, com ele, descobre outras coisas mais que os transcendem”, de modo que o relacionamento primário pode ser considerado como núcleo da organização da mente humana, ou seja, o que diz respeito a vínculos mãe-filho, eu-outro, humano-Deus. (Leal, 1993).

Winnicott (1963/1983) fala-nos a respeito do lactente humano, afirmando que o potencial herdado de um lactente apenas pode tornar-se um lactente propriamente dito se estiver ligado ao cuidado materno, sendo que os estágios do desenvolvimento variam de criança para criança, tanto por um (potencial herdado) quanto por outro fator (cuidado materno).

De acordo com Bleger (1984), a função social do psicólogo clínico deve ser basicamente a saúde pública e, inserida nela, a higiene mental, jamais devendo esperar o adoecimento para que possa intervir.

Em meio a uma circunstância de enfermidade de péssimo prognóstico como era a de meu filho, certas palavras médicas poderiam ter colaborado para uma desestruturação psíquica importante. No caso, tal não chegou a ocorrer, pois a fé era maior do que qualquer coisa que eu pudesse ouvir: minha relação com Deus e minha convicção de Sua presença junto de mim, em cada momento. Falo, aqui, do que transcende; remeto-me ao que é invisível como o vento, mas que se pode sentir como se pode senti-Lo. Àquilo que estrutura psíquica, defesa psíquica nenhuma pode dar conta de fazer e digo isso como cientista mesmo.

O Senhor nos adverte que “bem-aventurados os que não viram e creram”, em Jo 20:29.

Tenho ouvido diversas experiências de profissionais com mães que têm filhos com síndromes raras, diagnósticos e prognósticos terríveis a eles atribuídos. Parece haver, nesses casos, realmente uma postura de negação da doença ou, sobretudo, das limitações impostas por esta, em uma ânsia de que a criança viva e aprecie coisas que sua realidade impede que possa acontecer da forma como a mãe idealiza. Situações como essa podem representar riscos à sobrevivência da criança, bem como ao futuro psíquico da mãe, à medida que, crendo estar propiciando ao filho uma qualidade de vida próxima à de uma criança sem necessidades especiais, ela pode perceber, mais à frente, ter lhe causado até mesmo a abreviação desta ou a inviabilidade de que seu objetivo fosse concretizado, conduzindo ao contrário do que imaginara. O sentimento de culpa, que pode ser claramente observado nas mães em qualquer circunstância aversiva na vida de um filho, o que constatei por meio de inúmeras conversas com outras mães, inclusive nesses anos de hospitalização de meu filho (ainda que não haja culpa concreta alguma de sua parte) poderá, então, ser vivenciada de maneira dramática por aquela que se aperceber, tardiamente, de ter provocado algo que, sem intenção, provocou.

Em relação a minhas próprias experiências como mãe neste contexto durante anos, em diversos hospitais diferentes, posso confirmar a necessidade de que a equipe seja, em sua maioria, acolhedora. Não digo em sua totalidade, pois considero isto uma verdadeira utopia, sobretudo quando a hospitalização da criança é longa, de forma que os vínculos com os profissionais menos empáticos e a mãe acompanhante podem sofrer danos capazes de trazer experiências de ainda maior sofrimento para a última.]

A UTI tende a ser vista como um lugar de possibilidade de vida, apesar do risco constante de morte. Isto porque talvez se pense que o isolamento pode ser uma tentativa de controlar e dominar o imprevisível, a doença/saúde, a morte/vida. Parece ser necessária aptidão para uma convivência entre Morte /Vida/Fragilidade/Onipotência/Impotência. Na UTI, diante de tamanhas incertezas, tem que se ter cuidado para não haver uma grande desestruturação (Oliveira, 2002).

Conforme ouvi, certa vez, de uma mãe de UTI, ainda que ela chorasse “lágrimas de sangue”, tudo o que ela pedia a Deus era que não permitisse o sofrimento de seu filho. Boa parte parecia acreditar, por outro lado, ser um milagre o fato de o filho estar vivo, a despeito das suas circunstâncias físicas causarem um sofrimento isento de palavras que o pudessem expressar e, consequentemente, que pudessem ser avaliadas.

É claro que não temos qualquer poder sobre a vida e a morte. Se tivéssemos, o filho de ninguém morreria. A dor é extrema. Por mais que se assistisse ao sofrimento dele, cremos que nenhuma mãe ou nenhum pai seria capaz de determinar: “Agora, morra”. A situação é totalmente diferente disso. Crer nisto seria crer na possibilidade de onipotência de um ser mortal, dessa forma e, se isso realmente fosse possível, os pais fariam seus filhos sararem completamente, além de mantê-los vivos.

Diante do diagnóstico de doença degenerativa de meu filho, é interessante notar que, antes do resultado do exame chegar, ocorreu algo bastante importante em termos de um movimento grupal configurado pelas enfermeiras, que pegaram-me pelas mãos e buscaram, diante de tamanho sofrimento, o socorro, a ela, por meio da oração. Parece configurar-se, a partir de então, um vínculo entre elas, pautado na solidariedade e na fé cristã, em um vínculo que transcende o humano – a relação com Deus. Esta última, por sua vez, revela-se a mais importante das configurações vinculares estabelecidas, em meio ao mais extremo dos sofrimentos vividos por mim em todo aquele início. Diante do impossível, recorri ao único que poderia fazer alguma coisa. Dizia ao meu filho: “Não importa o que os médicos digam! É Jesus que está com você”. Com isso, introduzia minha criança em meu relacionamento com Deus, fazendo com que participasse dele.

O termo “resiliência” refere-se a um conceito conhecido há bastante tempo na Psicologia. O dicionário Aurélio descreve-o como a “Propriedade pela qual a energia armazenada em um corpo deformado é devolvida quando cessa a tensão causadora duma deformação elástica.”

Há mais de vinte anos, os psicólogos empregam este termo para descrever certo conjunto de qualidades favorecedoras de um processo de adaptação criativa e de transformação, a despeito dos riscos e da adversidade das situações vivenciadas. Pessoas que tenham passado por condições as mais terríveis e são capazes de viver uma vida de florescente alegria, podem ser consideradas resilientes, em uma verdadeira arte de ressurgir à vida, até mesmo após grandes sofrimentos e tragédias (Poletti e Dobbs, 2005).

Com isso, compreendemos que sofrimentos intensos causados pela enfermidade e/ou morte de um filho exige determinado grau dessa capacidade denominada resiliência. O filho que morre é um pedaço da alma que se vai, “esburacando” o coração materno. Aqui, falamos da deformidade deixada não em um corpo que precisa ter elasticidade para devolver a energia causadora da mesma, mas da força de recuperação emocional frente à falta constante com a qual se tem que conviver para o resto da vida. Um filho, ainda que se tenha dez, é insubstituível. Seu espaço, que era somente seu, na família, permanece agora vazio até a morte dos outros membros.

Neste sentido, porém, se alguém que vê a morte tão de perto, por assim dizer, com um filho que se vai, com esse pedaço de si mesmo que morre junto com ele, apresenta sentimentos e pensamentos de que ela é vergonhosa, um sofrimento inútil, não nos parece possível que haja resiliência. Neste caso, essa visão do acontecimento de que falamos é incompatível com qualquer possibilidade de que o indivíduo seja resiliente e, portanto, de que seja capaz de “ressurgir” diante de grandes dramas vivenciados, retomando sua vida de forma tão saudável sob todos os aspectos.

Eu, como mãe, aguardava sua vida em abundância, a cada dia. A cada amanhecer, eu esperava pela sua melhora, por uma maravilhosa surpresa. Nem por isso, desestruturei-me de modo a penetrar em um quadro de melancolia, quando ele faleceu. Dói sim e dói de uma forma indescritível e incomensurável, mas não seria diferente se eu vivesse amedrontada, sem esperança.

“Esperei com paciência no Senhor e Ele se inclinou para mim e ouviu o meu clamor.”

Escutar, empaticamente, a necessidade de cada acompanhante ou paciente no hospital geral é o alicerce para o sucesso do trabalho psicológico e de capelania nesse contexto, a fim de, por conseguinte, fornecer apoio, continência, um ambiente acolhedor a quem tanto carece disso.

“ Porque Deus amou o mundo de tal maneira, que deu o seu Filho Unigênito para que todo aquele que nEle crê não pereça, mas tenha a vida eterna.” (Jo: 3-16).

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